Este sistema é insuportável: exclui, degrada e mata

Os excluídos de uma determinada sociedade, pelo simples fato de existirem, constituem um sinal de contradição do sistema ou do paradigma vigente. De fato, na medida em que tal sistema ou paradigma tenta excluí-los, deve negar-lhes o direito de existência e, contemporaneamente, justificar tal atitude de negação.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

Se possível, e no limite extremo, pode até tentar eliminá-los pura e simplesmente. Aliás, é o que lembram as palavras do lema do Grito dos Excluídos deste ano. “Este sistema é insuportável: exclui, degrada e mata”. O problema é que, em momentos de carência de mão-de-obra barata e disponível, o mesmo sistema precisa deles para os trabalhos mais sujos e pesados, mais perigosos e mal pagos.

Eis os termos nítidos e concretos da contradição: a sociedade necessita de seu trabalho, mas nega-lhes o direito de cidadania. Abre a eles a porta dos fundos e, ao mesmo tempo, fecha-lhes a porta da frente. Querem trabalhadores, mas os rejeitam enquanto cidadãos. Para o sistema de filosofia liberal, ou neoliberal, o trabalhador ou trabalhadora não passa de uma peça de um maquinário em movimento cada vez mais veloz e acelerado. Peça que se usa e abusa, para depois descartar e substituir por outra. Aqui nada conta a dignidade da pessoa humana. Exclusão social ou “inclusão perversa”, como diria o sociólogo José de Souza Martins. Semelhante dinâmica contraditória, entre ouros fatores, explica a existência de tantos imigrantes irregulares, sem documentos, não raro com a cumplicidade das autoridades.

Negação/exclusão que gera afirmação

Vamos por partes. Os excluídos são simultaneamente uma solução (em tempos de falta de mão-de-obra) e um problema (quando a crise tende a provocar desemprego e subemprego). Neste último caso, serão eles as primeiras vítimas. Aí sim, para os imigrantes, prófugos e refugiados, por exemplo, chega o momento da expulsão ou deportação, não importando se correm ou não risco de vida em seu país de origem. Manifesta-se mais uma vez a contradição: excluídos como solução e problema. Semelhante forma de negação, por seu turno, contribui para que os excluídos, cedo ou tarde, tomem consciência da própria situação de marginalização. Em outras palavras, o fato de negá-los faz emergir com toda a força o processo mesmo da exclusão, seja ela de ordem socioeconômica ou político-cultural. A exclusão por parte da sociedade e do mercado, e a tomada de consciência da mesma, ao emergirem e se entrelaçarem, faz com que os excluídos se voltem contra o sistema que os nega.

Em termos concretos, os excluídos se afirmam justamente a partir da negação a que o sistema os condena e submete. De forma idêntica, os chamados “extra-comunitários” na Europa tomam consciência de sua marginalização na medida mesmo em que são classificados como tal. Mantê-los na exclusão é proporcionar-lhes uma oportunidade de erguer-se como “extrato oprmido” da sociedade do velho continente europeu. Outro exemplo: os hispânicos nos Estados Unidos se diluem pela sociedade e se agrupam em momentos de festa familiar ou de comemorações especiais. Mas, dado o fato mesmo de serem postos à margem pela sociedade estadunidense, podem agrupar-se e mobilizar-se organizadamente, politicamente. Foi o que se viu há alguns anos atrás: milhares de imigrantes de origem e língua hispânica saíram às ruas de Los Angeles portando um cartaz com a frase “We are America”. O próprio processo de exclusão social leva-os a afirmar-se como cidadãos. Os exemplos poderiam ser multiplicados por parágrafos e parágrafos.

Vale insistir sobre o fato de que a própria negação como excluídos, de forma consciente ou inconsciente, tende a gerar uma nova afirmação. Há anos dizíamos que o não lugar pode ser o melhor lugar para repensar o novo lugar. De fato quem passou pela dura experiência do não lugar, ou fronteira, costuma demonstrar maior abertura e aceitação às oportunidades de transformação social. A memória do sofrimento passado se progeta no presente e irriga o terreno do futuro para o lançamento de novas sementes. O contrário também é verdadeiro: quem nasce em berço de ouro costuma ser avesso a qualquer tipo de mudança, fecha-se reacionariamente no próprio ninho protetor e aconchegante. Quem se encontra solidamente estabelecido evitará a todo custo “turbulências” de ordem social. Somente os habitantes do não lugar são capazes de sofrerem um período de turbulência em vista de um horizonte mais largo, livre e aberto.

O mesmo se pode afirmar no caso do processo de exclusão social. Desde o ponto de vista dos excluídos, a não cidadania pode converter-se na melhor forma de patriotismo para repensar uma nova cidadania. Quem experimenta no corpo e na alma a negação/exclusão em uma determinada sociedade abre-se mais facilmente às propostas de mudança contra o sistema político e econômico. E inversamente, os cidadãos estabelicidos tentarão aferrar-se de forma conservadora ao status quo. Com unhas e dentes o defenderão, ao passo que os excluídos com maior probabilidade se engajarão nas lutas e mobilizações que levem à sua transformação.

O fetiche se volta contra o feticeiro

Exatamente neste contraste de negação/afirmação está a brecha, a fissura, a lacuna que põe em risco o próprio sistema. A força com que o leva a excluir, desde o momento que o faz, converte-se na fragilidade à qual permanece exposto diante da multidão marginalizada. Contradição evidente: justamente a força de negar abre a possibilidade para que os excluídos possam se afirmar. A negação por parte da sociedade abre caminho para a afirmação por parte dos que lhe estão à margem. Diante do sistema, os excluídos se afirmam tentando destruí-lo a partir das falhas e lacunas, sejam elas pequenas ou grandes. Como a água de uma represa: sua força oculta e domesticada, quando despertada e posta em movimento, é capaz de transformar uma pequena fissura em uma ruptura indomável e irreversível.

São possíveis outras imagens igualmente ilustrativas. Uma pedra atirada sobre a casa de alguém, pode cair em primeiro lugar sobre a cabeça do agressor. Ou uma palavra venenosa, quando lançada no ar, pode envenenar em primeiro lugar aquele que a proferiu. Ou ainda uma arma de fogo, mesmo quando utilizada para a própria defesa, pode ferir em primeiro lugar quem a dispara. Ocorre o mesmo com a negação e exclusão do outro que o sistema costuma perpetrar: tende a acumular mágoas e feridas, ressentimentos e formas de revolta que, se e quando devidamente canalizados, podem se mobilizar contra o próprio sistema.

Convém sublinhar, uma vez mais, que da mesma forma que o sistema nega o excluído e o coloca à margem, também o excluído, com o tempo, passará a negar o sistema em dupla dimensão. Do ponto de vista negativo, o rechaça tanto quanto é por ele rechaçado, acumulando forças para enfretá-lo na primeira oportunidade. Do ponto de vista positivo, infiltra-se através de suas brechas, minando-lhe a resistência e buscando, ao mesmo tempo, alternativas ao status quo. Verifica-se aqui uma passagem de uma revolta, não raro solitária, repressa e contida, a uma forma de organização, por mais que esta seja ainda incipiente. Em termos figurados, os excluídos se tornam-se “hóspedes inquietantes”, os quais, nos subterrâneos, periferias e grotões longínquos da sociedade, lenta mas tenazmente corróem as colunas e vigas mestras do edifício chamado sistema. Corróem negativamente, porém, positivamente, e à medida que reúne forças e toma consciência da situação, arquiteta e põe em prática novas vias de saída.

Isso nos adverte que nenhum sistema, por mais forte, sólido e articulado que seja, consegue domesticar e manipular por longo tempo a energia represada de uma multidão excluída. Pode até apossar-se de suas palavras de ordem, de suas bandeiras, tentando neutralizá-las. Mas o silêncio ressentido e humilhado, da mesma forma que a água represada, mantém-se além e imune às manobras neutralizadoras do sistema. Trata-se de uma espécie de silêncio que, quando transformado em palavra viva e consciente, converte-se igualmente em ação mobilizadora. Nada o detém, como nada é capaz de deter a força da água que rompe os diques. Nada pode o sistema contra esse silêncio transfigurado em palavra/ação.

Profetas e protagonistas

Em termos bíblico-teológicos, estamos diante da ideia de que “o verbo que se fez carne e veio habitar entre nós”, ou da força do espírito que entra nas coordenadas da história para abrir-lhe novos horizontes. Palavra profética e protagonista dos excluídos, a qual, ao mesmo tempo que denuncia o sistema negando-lhe qualquer possibilidade de vida justa, sadia e plena, anuncia a necessidade de uma alternativa. Na carne ferida e no tecido intrincado da história, essa palavra/ação costura novas formas de relações familiares e comunitárias, econômicas e sociais, políticas e culturais – no sentido de construir uma sociedade recriada.

A essa altura, poder-se-ia retomar o conceito de profetismo a partir do familiar binômio perguntas/respostas. Em qualquer transição de sistema ou paradigma, de fato, as respostas costumam faltar, enquando sobram as perguntas. Aqui entra em cena o tema do profetismo. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, profeta não é aquele que adivinha o futuro, e sim aquele que se torna capaz de ler em profundidade o presente, desvendado-lhe as potencialidades mais secretas. Tal leitura penetrante, crítica e aguda dos acontecimentos rompe com as ondas superficiais da história, tratando de desventar suas correntes subterâneas.

Dessse modo o profeta, a um só tempo, esconde e revela um segredo: o de que, em geral, as respostas precedem as perguntas. A verdade é que nenhuma pessoa e nenhuma sociedade suportam uma pergunta no vazio, como uma espécie de fantasma pairando sobre um abismo sem fundo. Perguntas não são espectros suspensos no vácuo. Quando se faz uma pergunta, especialmente sobre o significado da vida e da história, é porque, de forma consciente ou inconsciente, já existem no ambiente vestígios de resposta. A pergunta não nasce a partir de uma tabula rasa, a partir do nada. Em lugar disso, surge e se faz sempre mais nítida no labirinto complexo e fragmentário de nossas inquietações existenciais. O fato de formular a pergunta indica, por si só, a intuição de que já se sentem no ar ondas secretas que trazem consigo elementos de resposta. A pergunta, de certa forma, implícita ou explicitamente, respira as potencialidades desconexos de sua própria resposta.

Isso explica a função primordial da pergunta: não tanto levar à descoberta de uma resposta absolutamente nova e inusitada. Seu papel é, antes de tudo, tomar nas mãos aqueles vestígios mais ou menos inconscientes, organizá-los, sistematizá-los e dar-lhes um rumo – na direção de uma resposta que, a rigor, já existe como intuição profunda. A pergunta visa pavimentar o caminho para a resposta que, em maior ou menor grau, já circula nos subterrâneios ocultos da existência e da história. Diz o provérbio que “uma árvore ao tombar faz mais ruído do que uma floresta em crescimento’. Nesta perspectiva, e parafraseando Marx, poderíamos dizer que “o profeta é aquele que é capaz de ouvir a relva crescer”.

Resulta que os gemidos e inquietações dos excluídos, bem como o vaivém dos migrantes, em ambos os casos, carregam nos pés e na alma, fragmentos vivos de respostas aos desafios concretos da vida. Daí seu profetismo e protagonismo! O próprio fato de marchar e de levar às ruas seus gritos desarticulados é já impulsionado por tais intuições indefinidas. Resta conferir-lhes vez e voz para que possam organizar-se, mobilizar-se – em direção a uma resposta conjunta e articulada. Vem à tona o conceito de “intelectual orgânico” do filósofo italiano Gramsci. Não aquele que conduz as massas, mas que “é capaz de deixar-se conduzir por elas”. Capaz de ouvir profundamente as aspirações populares, traduzir-lhes e definir-lhes o sentido em projetos reais e viáveis, e devolvê-las aos verdadeiros protagonistas da história.

Conclusão

Convidado à vida social (como trabalhador), mas marginalizado pelo sistema (como cidadão), os excluídos refletem e sonham, gritam e lutam. Pouco a pouco, cresce a orquestração de uma alternativa. O grito, primeiro desarticulado e silencioso (ou silenciado), tende a condensar-se. Acumula energia, faz-se denso, coeso e forte, transfigura-se em organização. Mais um passo, e desdobra-se em movimento. E chega a vez da luta berta e consciente pela mudança. O desafio aqui é o de dar voz e vez ao gemido oculto, ao silêncio impotente dos marcados pela exclusão social. Poder-se-ia concluir, portanto, que o Grito dos Excluídos tem como objetivo número um engajar-se com os próprios excluídos nas brechas e lacunas do status quo – com a finalidade de reconstruir uma nova formação socioeconômica e político-social. Formação inclusiva, plural, solidária, social e ecologicamente sustentável – e com todos os demais adjetivos hoje recorrentes nos movimentos e forças sociais vivas e ativas.

Resta um desafio final. Final, mas que é ao mesmo tempo o início de tudo. Desafio que pode ser formulado nas seguintes perguntas: como criar canais, instrumentos e mecanismos para ouvir os clamores dos excluídos? Como emprestar-lhes vez e voz no cenário nacional e internacional? Como canalizar suas energias e potencialidades para uma verdadeira mudança, não um simples e superficial “mudancismo” de moda, mas uma transformação histórica e estrutural? Enfim, como pensar em uma articulação viável, concreta e realista – frente ao caos político e econômico do momento atual?!…

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