“PL4330. Um tiro de morte na CLT e na Constituição Federal”, diz Adalberto Cardoso

Entrevista especial com Adalberto Cardoso

“A CLT está sob ataque, então todo mundo se põe na trincheira para tentar defendê-la”, avalia o pesquisador.

 

 

Por Patricia Fachin e Ricardo Machado (IHU)

Há 129 anos o dia 1º de maio marca a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e de vida. No Brasil, há duas décadas é desencadeado um longo processo de flexibilização dos direitos trabalhistas, e que mais recentemente voltou à pauta nacional com a possibilidade de terceirização das atividades-fim das empresas, por meio do PL 4330, aprovado na Câmara de Deputados. “O projeto da radicalização da terceirização, junto com outros aspectos da agenda mais conservadora do Brasil, foi uma espécie de ‘panela de pressão’ que estava no fogo e que o Eduardo Cunha simplesmente resolveu abrir a tampa”, contextualiza Adalberto Cardoso, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

“O projeto base tal como foi votado representa o maior retrocesso na configuração jurídica de proteção do trabalhador no Brasil desde sempre. O maior retrocesso jamais tentado contra a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e o ordenamento jurídico de proteção social do Brasil, que é a nossa história, são 72 anos de CLT”, critica. Para o entrevistado, quando a atividade de trabalho é terceirizada, o trabalhador se torna ainda mais frágil, porque ele deixa de fazer parte da comunidade empresarial em que está inserido. “O trabalhador irá fazer parte de outra comunidade de emprego que não a empresa na qual ele está trabalhando, isto quer dizer que ele não faz parte daquela comunidade de trabalho, faz parte de alguma outra entidade que fica em um limbo jurídico no Brasil”, justifica.

Apesar do cenário, Adalberto considera muito difícil que a lei seja sancionada como foi aprovada na Câmara. “Passou pela Comissão de Constituição e Justiça muito rápido. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deveria ter julgado pela inconstitucionalidade da lei, mas o Eduardo Cunha controla a Comissão, então ele permitiu que a Câmara votasse um projeto que é obviamente inconstitucional. Isso será avaliado no Senado e como está não fica, porque o Senado irá mostrar a inconstitucionalidade de alguns preceitos”, avalia.

Adalberto Moreira Cardoso é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP e é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e pesquisador associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e do Warwick Institute for Employment Research.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como tem se dado a construção da sociedade do trabalho no Brasil e em que aspectos ela poderá se transformar caso a lei da terceirização seja aprovada?

Adalberto Cardoso – É uma questão muito complexa, não é uma coisa a ser respondida rapidamente. De todo modo o Brasil andou na contramão dos demais países da América Latina, especialmente Argentina, Chile, Peru, em parte o Uruguai e certamente o México, nos anos 1980, quando a Constituição de 1988 institucionalizou partes importantes do direito do trabalho. Neste momento tivemos uma refundação da ordem legal e jurídica de proteção dos trabalhadores, porque boa parte do que era aspecto legal, ou seja, da CLT, passou a fazer parte da Constituição, tornando muito mais difícil a mudança na legislação.

Tanto é que os governos Collor, Itamar e Fernando Henrique tentaram mudar aspectos centrais, como esta questão da terceirização que iniciou com o primeiro governo Fernando Henrique, mas a tentativa de uma medida provisória e o próprio Sandro Mabel foram derrotados no Congresso. A implementação deste projeto de lei, inicialmente de autoria de um parlamentar, foi acordada com o governo para que a medida não viesse na forma de uma iniciativa do Executivo. O projeto da terceirização vem no âmbito de uma tentativa mais ampla do governo Fernando Henrique de flexibilizar as relações de trabalho, que só foi conseguida a partir de 1998/1999, já no final do primeiro e no início do segundo mandato, com medidas de flexibilização do tipo: introdução da jornada de trabalho flexível, bancos de horas, contratos de trabalhos flexíveis, que não estavam previstos na CLT antes, contratos por tempo determinado, por tarefas e assim por diante.

Flexibilização

Houve a flexibilização de determinados aspectos que, por estarem na Constituição, levou muito tempo para que o governo conseguisse mexer. O projeto de reforma da legislação trabalhista e da ordem trabalhista no Brasil foi suspenso durante os dois primeiros governos do Lula. Primeiro, porque no primeiro mandato do Lula houve uma nítida guinada no governo com a suspensão de várias iniciativas, inclusive junto ao Ministério do Trabalho. As pessoas não entendem muito ou não conhecem muito a dinâmica da regulação do mercado de trabalho no Brasil e das relações de trabalho. O Ministério do Trabalho, que é a autoridade administrativa responsável por fazer boa parte da legislação, tem um papel importante nisso porque o Ministério baixa instruções normativas, portarias, etc. que regulam a ação de vários dos seus agentes. Por exemplo, a fiscalização do trabalho: uma portaria do Ministério do Trabalho pode tornar a fiscalização mais branda ou mais dura.

Resistência

Houve uma mudança na CLT no final do governo Fernando Henrique instituindo as comissões de conciliação prévia em um conjunto de empresas e essas comissões teriam a função de conciliar o conflito individual entre o trabalhador e seu empregador antes que isto chegasse à Justiça do Trabalho. Houve uma grande briga jurídica porque isso implicaria negar ao trabalhador o direito de recurso à justiça e ele teria que negociar individualmente com seu empregador. Então houve uma resistência grande da Justiça do Trabalho e o TST, e depois de vários julgamentos dessa questão foi editada uma Súmula que proibiu basicamente as comissões de conciliação prévia.

Justiça do Trabalho

Ao editar súmulas deste tipo, a Justiça do Trabalho leva o direito do trabalho para um lado ou para o outro. Uma jurisprudência consolidada pode ampliar ou reduzir os direitos que estão na legislação. Se pegar a Justiça do Trabalho e o Ministério do Trabalho agindo em conjunto, no primeiro mandato do governo Lula boa parte das medidas flexibilizadoras que estavam sendo legisladas ou sendo objetos de instruções normativas foram suspensas. O governo Lula não voltou atrás das medidas de flexibilização que foram aprovadas no governo anterior, mas não levou adiante as outras medidas que estavam em curso. Isso foi importante porque barrou a agenda de flexibilização da CLT e da Constituição Federal, mas esta pauta voltou, mais recentemente, com o projeto da radicalização da terceirização, junto com outros aspectos da agenda mais conservadora do Brasil. Foi uma espécie de “panela de pressão” que estava no fogo e que o Eduardo Cunha simplesmente resolveu abrir a tampa.

IHU On-Line – O que está acontecendo com o mercado de trabalho hoje? Como chegamos ao ponto de aprovar o PL 4330 na Câmara?

Adalberto Cardoso – Na semana em que o projeto foi votado e aprovado na Câmara dos Deputados, o que estava acontecendo é que o Cunha estava sendo derrotado em um dos pontos principais, que era a terceirização do serviço público. Isso era uma das coisas que tanto o projeto original quanto o Cunha imaginavam que era um dos elementos centrais desse projeto, de possibilitar a terceirização no setor público. Havia possibilidade de retrocesso, do ponto de vista dele, na votação dos outros destaques. De todo jeito, tudo indicava que ele iria perder.

De toda maneira, o projeto base tal como foi votado representa o maior retrocesso na configuração jurídica de proteção do trabalhador no Brasil desde sempre. É o maior retrocesso jamais tentado contra a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e o ordenamento jurídico de proteção social do Brasil, que é a nossa história, são 72 anos de CLT. O que se tentou, na verdade, foi abrir as portas para relações de trabalho não reguladas pela lei, porque o direito do trabalho no Brasil tem uma característica que é semelhante ao direito do trabalho legislado que se consolidou no México, na Argentina e também nos países mais corporativistas nos anos 1930/1940 como a Espanha, a Itália, ou seja, a CLT partia do princípio que a empresa é uma comunidade de trabalho e que o trabalhador tem direitos por fazer parte dessa comunidade de trabalho. Tanto que um dos aspectos centrais dessa proteção era a estabilidade no emprego, isto é, depois de 10 anos na empresa o trabalhador ganhava uma ideia de vitaliciedade, ele só poderia ser demitido com uma falta muito grave, uma justa causa.

Estabilidade

Se pegarmos os estudos mais recentes sobre os litígios trabalhistas nos anos 1950/1960 no Brasil, eles mostram que boa parte dos litígios propostos pelas empresas eram por falta grave dos trabalhadores, na tentativa de demitir trabalhadores estáveis. Esse era um elemento forte de conflito nas relações de trabalho no Brasil, porque todo o arcabouço legal foi construído com base nisso, de que todos os trabalhadores tinham segurança no emprego — depois de 10 anos não podiam ser demitidos. Ou seja, eles eram parte da comunidade constituinte da empresa e os direitos do trabalhador estavam relacionados com isso.

Com o fim da estabilidade e a introdução do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, em 1966, essa ideia da vitaliciedade depois de 10 anos acabou, mas a do direito relacionado com o fato de que o trabalhador é membro de uma comunidade de trabalho continua até hoje e é parte da CLT. Isso define, por exemplo, a possibilidade do trabalhador de ser representado por um sindicato, pois tal representação está relacionada com o emprego na empresa específica, porque aquela empresa configura um enquadramento sindical, a ocupação do trabalhador também tem um enquadramento sindical equivalente à empresa em que ele trabalha, é todo um arranjo que supõe que o trabalhador está sob as ordens do mesmo empregador.

Quando a atividade é terceirizada, estes pilares são rompidos e destruídos, porque o trabalhador fará parte de outra comunidade de emprego que não a empresa na qual ele está trabalhando. Isto quer dizer que ele não faz parte daquela comunidade de trabalho, mas de alguma outra entidade que fica num limbo jurídico no Brasil. Essa lei, tal como está, dá legitimidade ou legalidade a este limbo e o torna alguma coisa que tem legalidade, mas que retira os direitos do trabalhador, porque ele não pode ser representado pelo sindicato que representa os trabalhadores da empresa. A empresa que contrata não pode ser responsabilizada caso a terceirizada não cumpra os direitos trabalhistas. No entanto, a empresa terceirizada pode, por sua vez, contratar outra empresa que vai oferecer a mão de obra que esta terceira vai oferecer para quem contrata, ou seja, há uma espécie de “quarteirização”. Então, em todos os sentidos é um descalabro.

IHU On-line – Como a CLT deixará de existir caso a lei da terceirização seja sancionada? O que muda em relação à CLT?

Adalberto Cardoso – Se a lei for aprovada, é um tiro de morte na CLT. Não só na CLT, mas na Constituição Federal. É muito difícil que a lei, tal como está, seja aprovada no Senado, porque passou pela Comissão de Constituição e Justiça muito rápido. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deveria ter julgado pela inconstitucionalidade da lei, mas o Eduardo Cunha controla a Comissão, então ele permitiu que a Câmara votasse um projeto que é obviamente inconstitucional. Isso será avaliado no Senado e como está não fica, porque o Senado irá mostrar a inconstitucionalidade de alguns preceitos.

No Brasil, como eu falei, os preceitos principais da CLT estão na Constituição, então não é possível aprovar um projeto de lei que retira direitos que estão na Constituição, para isso é necessário mudar a Constituição. E isso não é um projeto de emenda constitucional, é um projeto de lei.

No Senado não passa, se passar no Senado como está é muito provável que a presidente Dilma vete e, se não vetar, a lei será objeto de inúmeras ações de inconstitucionalidade impostas pelas centrais sindicais, sindicatos e confederações, e o STF irá se pronunciar pela inconstitucionalidade da lei. Esse é um processo que ainda vai demorar muito. Agora, por causa da perspectiva de veto da Dilma e da inconstitucionalidade votada pelo STF, é muito provável que o Senado mexa na lei a ponto de torná-la constitucional, e a minha avaliação é que teremos uma lei de terceirização, mas não essa que está aí.

IHU On-line – O que a aprovação do PL 4330 mostra sobre o sindicalismo no Brasil?

Adalberto Cardoso – A força ou fraqueza do sindicalismo não tem nada a ver com os movimentos do Eduardo Cunha. Os movimentos do Eduardo Cunha têm a ver com uma correlação de forças no Congresso Nacional, que é hoje muito mais conservador do que os últimos congressos que tivemos; as últimas legislaturas também eram conservadoras, mas nessa o presidente conservador conseguiu organizar uma maioria também conservadora e que tem votado contra o governo. Isso é fruto de uma dinâmica interna do Congresso.

Outra coisa é o movimento sindical; você tem razão que ele está mais debilitado hoje do que já esteve no passado, mas as taxas de greve não têm caído no Brasil, pelo contrário, têm aumentado. Além disso, a capacidade de os sindicatos conseguirem aumentos reais dos salários, acima da inflação, está em torno de 90% das negociações coletivas.

O que não tem é a repercussão política de antes, a ação sindical que luta nas empresas para ter aumento salarial. E, quando tem greve, isso não gera uma grande repercussão política, porque hoje nós estamos em uma democracia, greve é algo normal, vira notícia quando a greve é “puxada” por pessoas fora do sindicato, que não pertencem ao sindicato, como aconteceu com o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj, a greve dos garis no Rio de Janeiro e alguns outros casos. Mas esses casos são exceção, no Brasil greves “puxadas” por oposições sindicais não são generalizadas. O que aconteceu, repito, foi uma exceção.

IHU On-line – Pergunto por que, na ocasião da votação do PL 4330, quatro centrais se posicionaram a favor do PL com algumas ressalvas, entre elas a terceirização da atividade-fim?

Adalberto Cardoso – Houve certo “racha” nas centrais sindicais, mas por um erro de avaliação dos presidentes dessas centrais, principalmente do Paulo Pereira da Silva, que cometeu um erro gravíssimo de avaliação, de vir a público como ele veio, apoiando a terceirização, que, do ponto de vista dele, da categoria que o elegeu e da central que ele representa, repito, é um tiro na cabeça, é um tiro no peito da CLT e um tiro na cabeça do sindicalista que apoia este tipo de coisa — o termo para isso é “suicídio político”.

Das quatro centrais que apoiaram, só uma tem força real, que é a Força Sindical, as outras são centrais muito pequenas. As centrais mais importantes, a Central Única dos Trabalhadores – CUT e a Central dos Trabalhadores do Brasil – CTB, que são as duas maiores, não apoiaram. O movimento contrário à aprovação das emendas foi enorme e organizado pelas centrais sindicais, fato este que é mais importante do que o tiro na cabeça que alguns sindicalistas deram ao apoiar o projeto, porque o projeto não irá passar.

IHU On-line – Qual é a situação dos funcionários terceirizados hoje em relação aos que não são terceirizados?

Adalberto Cardoso – Segundo um estudo que o Dieese publicou há alguns anos, existe no Brasil algo em torno de 13 milhões de terceirizados num mercado formal de trabalho de 50 milhões de pessoas; a proporção não é pequena, é perto de 30% do mercado formal. Se pegarmos a população ocupada como um todo, esta proporção cai pela metade, e de todo jeito ainda é muito alto, mais alto que no México, por exemplo, e em outros países onde a terceirização é grande. No Brasil, isso foi permitido por Súmula do Tribunal Superior do Trabalho que foi referendada pelo Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a terceirização só é permitida em atividades-meio. O problema é que a definição do que é uma atividade-meio é sujeita à controvérsia, inclusive controvérsia judicial, então as empresas testam, terceirizam atividades, sabem que os sindicatos irão entrar na justiça contra isso e testam as fronteiras do judiciário na definição do que é atividade-meio e atividade-fim.

O resultado disso é que vem aumentando no Brasil a proporção de terceirizados. Em uma Súmula jurisprudencial que é ambígua, foi permitido que as empresas testassem as suas fronteiras até o limite de termos hoje 13 milhões de trabalhadores terceirizados em um país onde não se tem 13 milhões de posições de atividades-meio, como manutenção de equipamentos, limpeza, construção, copa, serviços de restaurantes, etc., dentro das empresas, entendendo-se por atividade-meio, eventualmente, até serviço de transporte no interior das empresas.

Estrutura produtiva

O problema da estrutura produtiva do Brasil é que não se esperaria que perto dos 30% dos ocupados estariam em atividades-meio, porque não há tantas atividades-meio assim, classificadas como tal nas empresas. Isso é resultado do teste dos empresários das fronteiras da ambiguidade da norma jurisprudencial. Se o projeto, tal como se espera, retirar a terceirização de atividades-fim, irá manter-se a ambiguidade atual, isto é, na eventualidade de a lei ser aprovada, de não ser vetada, de passar pelo Senado, de não ser declarada inconstitucional pelo Supremo — o que eu duvido —, vai continuar o problema da fronteira ambígua entre o que é meio e o que é fim. Não é possível definir isso para todo o conjunto de atividades empresariais do país, para todos os sete ou oito milhões de empresas que nós temos no Brasil, há uma minúcia que nenhuma legislação apreende.

Ambiguidade

Essa ambiguidade vai continuar. A quem interessa a terceirização em praticamente todos os segmentos da economia? Bancos, supermercados, todos os serviços de logística, tudo o que envolve serviços de logística das empresas ou que prestam serviços às empresas, no campo (atividades agrícolas em geral); interessa muito a vários empresários. Há uma parte da indústria cuja produção é feita em cadeias produtivas, onde, inclusive, há terceirização no seguinte sentido: a Wolksvagem, por exemplo, que monta caminhões aqui em Rezende, Rio de Janeiro, é só uma coordenadora de várias empresas que trabalham sob seu comando, mas a Wolksvagem mesmo não produz nada, mas tem a empresa que produz chassi, essa empresa poderá terceirizar a mão de obra de sua produção.

Hoje em dia os trabalhadores que estão produzindo chassi são empregados dessa empresa, isso vai poder ser terceirizado, e essa terceira que ganhar uma concorrência da Volkswagen para produzir chassi poderá contratar uma “quarteira” para poder usar a mão de obra que será empregada na produção do chassi. O objetivo disso é transferir para o mais longe possível quem irá arcar com os direitos trabalhistas. Isso quer dizer: reduzir brutalmente os custos de manutenção da força de trabalho, transferir para os trabalhadores, evidentemente, o custo disso, sem que a Volkswagen, por exemplo, seja a responsável solidária por aquela lá na frente que está contratando. Isto interessa a determinados segmentos industriais que operam na forma de condomínios de produção, que têm cadeias produtivas muito extensas, que é o caso das montadoras de automóveis, mas também do segmento naval aqui no Rio de Janeiro. Há um conjunto enorme de indústrias que trabalham nestas condições hoje.

IHU On-line – Como avalia a decisão do STF de liberar a terceirização nas áreas sociais do Estado, sinalizando o fim do concurso público?

Adalberto Cardoso – Acho que a cobertura sobre este tema está muito enviesada. As pessoas não leram muito bem o que foi aprovado no STF e a legislação sobre as organizações sociais e estão reproduzindo argumentos que não sei onde estão sendo gerados. Porque uma organização social não é uma agência privada, não é uma empresa privada, é uma organização social que tem que ter no seu Conselho representantes do poder público.

Uma Organização Social – OS presta contas ao Tribunal de Contas da União, não tem autonomia financeira como uma empresa privada, não pode ter lucros como uma empresa privada, as suas contas estão subordinadas ao Tribunal de Contas da União, assim como as contas da Presidência da República ou de qualquer repartição pública. Não é assim que é possível transferir para uma empresa privada a gestão dos serviços públicos, este é o primeiro ponto.

Segundo ponto: as OS foram criadas no governo Fernando Henrique Cardoso. Foi um projeto do Ministro Bresser-Pereira, com orientação do Banco Mundial, para a gestão dos hospitais das universidades públicas federais. Este era o objetivo da criação das OS: retirar os hospitais do âmbito do Ministério da Educação e transferir para permitir a gestão dos hospitais por uma coordenação social, que é o que estou falando. Que tem um conselho de administração, que presta contas ao Tribunal de Contas da União, que tem um controle do poder público sobre sua atividade, etc. Uma OS é uma organização semipública, quer dizer que ela é semiprivada, mas não tem fins lucrativos, então não é uma empresa privada, é uma organização privada. Isso faz muita diferença na compreensão da complexidade do que está em jogo em si.

IHU On-line – A decisão não é ruim ou equivocada?

Adalberto Cardoso – Ela não é uma decisão que permite a terceirização de todos os serviços públicos porque isso não é possível. O que está em jogo é o seguinte: o Estado pode estabelecer contratos de gestão com uma OS. Esta irá apresentar um projeto de gestão, por exemplo, do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e o Estado vai transferir o recurso do tesouro para esta organização para que ela possa gerir o hospital. Existem hoje organizações deste tipo funcionando em todo o país, não estou dizendo que é bom ou ruim, só estou dando um quadro da complexidade do problema. Existem nuances no âmbito municipal, o Rio de Janeiro tem várias organizações sociais responsáveis pela gestão de aspectos da sua administração. O Estado do Rio de Janeiro tem organizações sociais, e alguns outros entes federativos do Brasil também, isso só estava proibido no âmbito federal por conta dessa ação direta de inconstitucionalidade que foi votada agora. Esse é o quadro geral.

Isso é ruim ou isso é bom? Isso permite, sim, a terceirização da gestão de determinados aspectos da política social do governo, de qualquer governo. É possível, por exemplo, transferir a uma organização social a gestão do Bolsa Família, é possível transferir a gestão das Universidades Federais, etc. Isso não quer dizer que as universidade federais deixarão de ser geridas pelo poder público, porque as OS estarão sob supervisão do poder público e suas contas serão auditadas pelo Tribunal de Contas da União.

A operacionalização disso, do ponto de vista da gestão pública, vai depender muito de quem estiver no governo. Quem impetrou a ação direta de inconstitucionalidade lá atrás, que impediu que esse projeto fosse adiante, foi o PT. Então, é pouco provável que um governo do PT passe a terceirizar e privatizar a gestão pública, mas isso pode acontecer em um governo de inclinação mais liberal, pode acontecer de levar às últimas consequências, levar a lei ao seu objetivo. O termo não é “desestatizar”, porque ainda vai ficar no âmbito da gestão pública, mas retirar do âmbito do governo a gestão de determinadas políticas públicas e sociais.

IHU On-line – Há uma alegação de que se esta política for estendida às universidades, os professores poderão ser contratados sem concurso público. Isso seria um problema?

Adalberto Cardoso – Não sei como funciona a contratação, não sei como está na lei das OS a contratação de pessoas. Isso tem que levar à minúcia, porque o regime jurídico único serve e regula os funcionários públicos. Uma OS, neste aspecto específico, não contrata funcionários públicos; embora tenha que prestar contas ao TCU, seus contratados não são funcionários públicos. No entanto, é regida pela mesma legislação, por exemplo, está sujeita à mesma legislação pública de concorrência para prestação de serviços. Se uma OS vai contratar um engenheiro para prestar um serviço público em um hospital, por exemplo, ela precisa fazer isso na forma da Lei 8666, que é a lei da concorrência. Isso é uma proteção? Não se sabe, mas ela abre a possibilidade, em tese, de que a contratação seja por meio de uma concorrência pública, ainda que não um concurso público.

Sobre a possibilidade de contratação a título precário para as universidades e para outros serviços públicos, eu não sei. Há o caso do Instituto de Matemática Pura e Aplicada – IMPA, no Rio de Janeiro, que é uma organização social, mas todos os professores e pesquisadores de lá são funcionários públicos. Era um instituto que pertencia ao CNPq e hoje é gerido por uma OS. Estou falando isso porque, de fato, não sei qual é o regime trabalhista que irá regular a contratação de pessoas, porque no IMPA as pessoas são servidoras públicas.

IHU On-line – Quando surgiu a CLT, teóricos que estudavam o mundo do trabalho a criticavam na tentativa de ampliar direitos e reduzir a jornada. Como entender essa total reversão nos dias de hoje, em que a defesa da CLT parece ser a única alternativa para os trabalhadores? Nesse sentido, como vê as críticas que foram feitas à CLT à época? Essas críticas ainda são válidas ou a CLT se transformou, de fato, no instrumento de garantia de direitos dos trabalhadores?

Adalberto Cardoso – A CLT está sob ataque, então todo mundo se põe na trincheira para tentar defendê-la. Estamos diante de uma conjuntura específica e o que se tem que fazer, de fato, é defender a CLT. Isso não quer dizer que os outros temas estão fora da pauta; estão entre parênteses, porque agora todas as energias estão voltadas para evitar a coisa da terceirização.

Mas ainda há a pauta das centrais sindicais, que continua sendo a redução da jornada de trabalho, fim do Fator Previdenciário, ampliação dos direitos das mulheres, etc. Estes são temas que se, por um lado, a constitucionalização desses direitos foi positiva, porque tornou mais difícil mexê-los, por outro lado, o fato de a jornada de trabalho, por exemplo, estar na Constituição, torna o problema mais difícil também para o lado dos trabalhadores, pois para baixar de 44 para 40 horas é necessário mudar a Constituição. Para aumentar o direito da gestante em um ou dois ou três meses é necessário mexer na Constituição.

Esses direitos são constitucionais, cuja mudança requer um Congresso Nacional menos conservador do que outro tema. Isso tem sido conseguido, na prática, em várias categorias do Brasil; a negociação coletiva das categorias mais fortes em vários lugares do Brasil, no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre, tem conseguido redução de jornada — 42, 40 horas, dependendo do setor. Então, os acordos e convenções coletivas têm conseguido, no âmbito local, melhorar esses direitos. A questão é que a legislação universalizaria isso, mas isso é mais difícil, mas continua na pauta dos sindicatos, com certeza.

IHU On-line – O que seria uma alternativa à terceirização?

Adalberto Cardoso – No meu ponto de vista, o fim da terceirização. Porque a terceirização é um mecanismo de precarização das relações de trabalho, então a alternativa que seria mais vantajosa para os trabalhadores é que a terceirização, em ocorrendo, se restringisse a atividades muito específicas das empresas de prestadores de serviços externos a essa comunidade de trabalho sobre a qual estava falando. É isso, não deveria existir.

Por Patricia Fachin e Ricardo Machado

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