ENTREVISTA ESPECIAL: O filho do Concílio e a luta contra o clericalismo

“Nas ‘estruturas fundantes da vida eclesial’, começa a se afirmar uma ‘lógica nova’: a colegialidade sinodal, o primado da misericórdia, a crítica do clericalismo e a prioridade de uma Igreja pobre são apenas alguns dos sinais dessa passagem, que agora inicia de verdade”, analisa o professor.

Por: Por João Vitor Santos e Patricia Fachin
Traduzir a Igreja Católica para o mundo atual. Essa parece ser a principal bandeira do pontificado de Francisco, segundo a leitura de. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o teólogo italiano destaca que o Papa demonstra anticlericalismo. Ou seja, quer pensar uma Igreja mais horizontal, sem engessamentos hierárquicos que impõem doutrinas e visões de mundo. Essa colegialidade se manifesta, por exemplo, na importância que dá para discussões nos sínodos. Para Grillo, numa demonstração muito clara dos princípios do Concílio Vaticano II, o pontificado tem “muitos elementos declaradamente anticlericais, que chegam a renovar de modo salutar a tradição Papal e episcopal”. Essa ideia de trazer a Igreja para o mundo de hoje não é desconsiderar a tradição. Pelo contrário, Grillo vê na tradução o essencial para manter viva a tradição. “A ‘escola conciliar’ demonstra amplamente que há um caminho para poder confirmar a grande tradição católica, assumindo a responsabilidade de uma ‘tradução’ e de uma ‘atualização’ da doutrina e da disciplina”, pontua.

Ao longo da entrevista, o teólogo italiano também discute pontos polêmicos, como as críticas que Francisco recebe. Entre elas, o fato de não ser teólogo. O que, para muitos, eleva o poder de setores da Cúria como a Congregação para Doutrina da Fé. “Se há uma coisa clara é que o papel da Congregação para a Doutrina da Fé nunca foi e seguramente nunca poderá ser o de ‘dar estrutura teológica’ aos pontificados”, afirma. “A Congregação não tem o Papa a seu serviço, mas é ela que se coloca a serviço do Papa”, conclui.

Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como entender o “fenômeno Francisco”?

Andrea Grillo – O simples fato de chamar Francisco de “fenômeno” indica um dado de grande relevância. Por um lado, usa-se essa expressão como que diante da “manifestação de algo maior e inesperado”. É como dizer: “Francisco é um fenômeno”, ou seja, a manifestação de algo verdadeiramente grande, tocante, extraordinário. Eu diria: é a súbita manifestação, justamente na cúpula da Igreja Católica, do Concílio Vaticano II,[1] plenamente implementado, de repente. Esse é realmente um fenômeno muito particular.

No entanto, é preciso dizer que, ao mesmo tempo, fala-se de “fenômeno Francisco”, quase para se distanciar de algo que “se entende pouco”. Se são bispos ou cardeais que falam assim — e os há — porque temos bispos e cardeais analfabetos de Vaticano II. Eles são desprovidos das categorias elementares para “entender” não só Francisco, mas também a Igreja dos últimos 50 anos. Para eles, o pontífice, tendo saído do leito habitual e normativo, fala uma língua quase desconhecida.
Francisco, com a sua aparição no dia 13 de março, pôs em evidência estes dois aspectos: há uma grande parte da Igreja Católica que o descobriu subitamente como um “fenômeno” do qual tinha um “pressentimento”. Mas há um setor da Igreja, muito menos extenso, mas não desprovido de poder, que o considerou desde o início com “ressentimento”. Pressentimento popular e ressentimento hierárquico são “dados” desse biênio de pontificado, dados que não podem ser postos no mesmo plano, mas que devem ser considerados com atenção.

IHU On-Line – Qual é a proposta de Francisco ao propor o sínodo sobre a família?  Que respostas a Igreja busca dar às novas configurações familiares da contemporaneidade?

Andrea Grillo – Parece-me que uma característica fundamental do pontificado de Francisco está concentrada em duas palavras, que encontram no Sínodo sobre a família uma imediata e embaraçosa verdade: são dois modos de chamar a Igreja, que a definem como “não autorreferencial” e como “hospital de campanha”. Nessas denominações, a Igreja encontra-se particularmente “posta à prova”, quando se trata de estabelecer uma relação com a família contemporânea. Justamente sobre esse assunto, tão delicado e decisivo, os limites de uma postura autorreferencial e “sectária” da Igreja surgem continuamente. Elaboramos, sobretudo nos últimos 150 anos, uma “doutrina sobre o matrimônio” que nos torna incapazes não só de responder às questões, mas também de formular as perguntas corretas. A prova disso é a contraditoriedade das propostas sobre temas “quentes”, como, por exemplo, a “comunhão dos divorciados recasados”.

Francisco sabe muito bem que uma Igreja não autorreferencial, acima de tudo, deve modificar esses pontos escandalosos da própria disciplina oficial. A “escola conciliar” demonstra amplamente que há um caminho para poder confirmar a grande tradição católica, assumindo a responsabilidade de uma “tradução” e de uma “atualização” da doutrina e da disciplina. Mas, justamente sobre o matrimônio, parece que devem ser montadas as barricadas sobre detalhes disciplinares secundários…

IHU On-Line – Qual é o significado e quais as características da “colegialidade” no pontificado de Francisco?

Andrea Grillo – A colegialidade é a forma ordinária de uma Igreja “não autorreferencial”, porque pressupõe que mesmo apenas para constatar a realidade é preciso uma abordagem “dialógica”. Colegial, como lógica do “primado” na Igreja Católica — que tem, na sua cúpula, não só o Papa, mas também o Colégio Episcopal —, é a indicação de um “método para enfrentar as questões”. Eu diria que é quase “óbvio” que Francisco, vindo de uma tradição abertamente inspirada no Vaticano II, faz dessa grande experiência eclesial o “estilo” não só do seu Papado, mas também do modo pelo qual a Igreja enfrenta as questões do mundo contemporâneo, à luz do Evangelho e da experiência dos homens, segundo a Gaudium et Spes[2] nº 46.

IHU On-Line – Como o Papa Francisco aborda a questão das novas configurações da família?

Andrea Grillo – Parece-me que a essa pergunta não se deva responder segundo uma lógica de “valores”. Aqui eu vejo de maneira indistinta, num curto espaço de tempo, a verdadeira novidade de Francisco em relação aos Papas que o precederam imediatamente. Acima de tudo, pelo fato de não aceitar uma postura apologética do Papado. Por isso, Francisco escreveu que “a realidade é superior à ideia”: isso significa que a família, o amor, a intimidade, a geração não são “ideias claras e distintas” que os homens e as mulheres devem simplesmente “aplicar”, mas são grandes realidades, complexas, em evolução, a partir das quais transparece e através das quais se realiza o amor de Deus.
Não se trata, acima de tudo, de demonizar um inimigo, mesmo quando existam práxis problemáticas. Trata-se de anunciar, sobretudo, a misericórdia e a bênção de Deus. Nisso, Francisco é justamente o primeiro Papa “filho do Vaticano II”. Esse não é um mérito dele, mas é a força da tradição católica, que soube gerar um Papa com essas características, devidas à sua formação, à sua pastoral, à sua linguagem, às suas leituras, que brotaram dos textos e dos gestos conciliares.

IHU On-Line – Qual o significado do sínodo no pontificado de Francisco? No que se diferencia dos outros pontificados?

Andrea Grillo – O Sínodo é a primeira grande realização de um estilo eclesial e de um método de trabalho, que parece ser marcado, ao menos nas intenções que o projetaram, por uma característica: a ausência de clericalismo. Muitas vezes, sobre esse ponto, criou-se certo equívoco. Há alguns, mesmo na Cúria Romana, que confundem o clericalismo com o catolicismo. E que, portanto, com base nesse erro, podem chegar a dizer que existem elementos “anticatólicos” no magistério de Francisco.
Na realidade, há muitos elementos declaradamente anticlericais, que chegam a renovar de modo salutar a tradição Papal e episcopal. Sobretudo na Cúria Romana, mas às vezes também nas periferias eclesiais, há uma certa confusão. Somos tentados a pensar que, para defender a Igreja Católica, é preciso defender a todo o custo a sua postura clerical. E essa atitude distorcida, note-se bem, não diz respeito apenas aos “clérigos”, mas, infelizmente, contagia também os “leigos”.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação da primeira etapa do Sínodo no ano passado? Como foi a recepção entre os bispos e como imagina que deva ser na conclusão dessa segunda etapa?

Andrea Grillo – A avaliação da primeira fase do Sínodo é positiva, cheia de aberturas, mesmo que manifeste as dificuldades para “entender a linguagem e o estilo” que o Papa Francisco quis retomar, 50 anos depois, diretamente da experiência conciliar. Digamos a verdade: para muitos, foi um “balde de água fria”. Até mesmo o simples fato de que o Papa, desde o início, tenha pedido a todos “parrésia”,[3] perturbou profundamente todos os defensores do clericalismo formal, para o qual tudo é possível, menos ser sinceros. O aspecto cortesão do Sínodo dos Bispos, que as últimas décadas viram crescer exponencialmente, sofreu um profundo revés e tentou reagir, vingar-se, montar barricadas, escrever livros preventivos, agitar as massas e a “rede”.
Nessas reações, infelizmente, distinguiram-se também “teólogos”, acostumados a serem “chefes de claque” e agora, repentinamente, transformados em “defensores fidei”. São casos em que, na minha opinião, está em jogo tanto a competência teológica quanto a maturidade humana. E me pergunto: como se faz para anunciar realmente a “misericórdia” se nos tornamos cúmplices de uma Igreja que alimenta, em matéria familiar, fingimentos e hipocrisias? Eu acrescento, além disso, uma notícia que literalmente me escandalizou. Soube que um dos maiores responsáveis do Sínodo Extraordinário, quando voltou para a sua diocese, decidiu que o questionário em vista do Sínodo de outubro próximo devia ser preenchido somente por ele. É um sinal do clericalismo secular, duro de matar.

IHU On-Line – Qual o significado do Jubileu da Misericórdia no pontificado de Francisco? E no que está baseado o conceito de misericórdia para Francisco? Por que esse aparece como um dos conceitos centrais de seu pontificado?

Andrea Grillo – O tema da misericórdia, que agora assumiu também a relevância de um “tema jubilar”, é uma espécie de “fio de ouro” do pontificado. Ele é, em grande medida, uma herança do Concílio Vaticano II, como bem atesta a dupla citação que encontramos no início da bula Misericordiae Vultus,[4] em que são cotados os dois discursos “extremos” do Concílio, ou seja, o discurso de abertura, de João XXIII,[5] e o discurso de encerramento, de Paulo VI,[6] em que ambos os pontífices fazem da misericórdia a “cifra” da novidade conciliar, contrapondo o “usar o remédio da misericórdia” ao “abraçar as armas do rigor”. Certamente, a misericórdia de que fala Francisco não pode ser compreendida na linha da devoção polonesa como “divina misericórdia”, que perde esse horizonte comunitário e conciliar e desliza para um desvio devocional e privado.

IHU On-Line – É possível encontrar um fio condutor nas homilias de Francisco? Como as linhas mestras de seu pontificado aparecem nas homilias?

Andrea Grillo – O fio condutor a ser encontrado nas homilias de Francisco não é tanto em nível de conteúdo — que embora muitas vezes é absolutamente relevante —, mas, acima de tudo, em nível de “forma” e de “estilo”. O próprio fato de que um Papa, todos os dias, às 7h, na missa que concelebra, profira regularmente uma homilia, representa, objetivamente, um fato que abala o restante da Igreja. Mas, também aqui, a chave de leitura é o Concílio Vaticano II, do qual Francisco é filho legítimo e, ao mesmo tempo, natural.
Em relação aos antecessores, Francisco tem uma vantagem sem igual: sendo filho do Concílio, não sente a responsabilidade de ter sido padre no Concílio. Justamente essa responsabilidade pesou tanto sobre os antecessores — pense-se no tormento de Paulo VI, nas hesitações de João Paulo II [7] e nos retrocessos de Bento XVI [8] —, todos os quais eram diretamente “padres” do Concílio. Eles viam o Concílio como seu “filho”, um filho com o qual se preocupavam, enquanto, neste caso, é o Papa que considera o Concílio como pai. E assim, cotidianamente, ele celebra comunitariamente, concelebra e profere a homilia. Quanta distância de Papas acostumados a celebrar privadamente, sem concelebração e sem homilia. Quanto incide sobre a sua pastoral esse “bom hábito”, apreendido do Concílio como leite materno.

IHU On-Line – O senhor defende que “se uma tradição é forte, ela sempre sabe se traduzir em formas novas”. Mas a que se refere especificamente? Como a tradição se traduz em novas formas no pontificado de Francisco?

Andrea Grillo – A tradição, se quiser permanecer viva, deve se traduzir. Ou, melhor, poderíamos dizer que o elemento mais típico de uma tradição é justamente o de “transmitir” não a si mesma, mas o mistério de Deus. Nessa sua função, ela tem a necessidade de nunca se tornar um monólito, a ser colocado em um museu, como uma estátua de mármore. A força de uma tradição reside na sua capacidade de se traduzir em formas sempre novas, cada vez mais adequadas. A tradição não é uma doutrina a ser aprendida ou uma norma a se obedecer, mas uma história para se fazer parte, segundo a liberdade com que o Espírito a move e a inspira.
No reinado de Francisco, a tradução é acima de tudo uma questão de “linguagem” e de “estilo”. A palavra de Francisco é apenas aparentemente “simples”. Digamos, ao contrário, que ela é direta, é imediata, mas também é curada, cinzelada, finamente pensada. São superficiais — ou ressentidos — aqueles que não veem como é acurada a “tomada de palavra” que Francisco repete continuamente, com tato, com tom, com timbre requintado. Linguagem e estilo de um Papa americano. E dois dos máximos especialistas do Concílio Vaticano II — Routhier [9] e O’Malley,[10] ambos americanos — reconhecem que a novidade fundamental desse Concílio está em uma nova linguagem e um novo estilo.

IHU On-Line – Qual deverá ser o papel da Congregação Doutrina da Fé no pontificado de Francisco? Quais as possibilidades de a Congregação desempenhar um papel mais ou menos central no pontificado de Francisco, a partir da crítica de que Francisco tem “pouca estrutura teológica”?

Andrea Grillo – Se há uma coisa clara, que ninguém pode pôr em discussão, é que o papel da Congregação para a Doutrina da Fé — ex-Santo Ofício — nunca foi e seguramente nunca poderá ser o de “dar estrutura teológica” aos pontificados. Se alguém pensasse — em qualquer nível hierárquico — que poderia “reestruturar” o magistério de Francisco, ou de João XXIII, ou de João Paulo I,[11] estaria totalmente fora da tradição e proporia uma tradução dela completamente incorreta e bastante perigosa.
A Congregação não tem o Papa a seu serviço, mas é ela que se coloca a serviço do Papa. Trata-se de um serviço qualificado, com margens também de reserva crítica, mas não se trata, em caso algum, de substituição ou de normalização. Ao contrário, parece-me que a questão deve ser invertida: como Francisco poderá dar “estrutura teológica conciliar” ao serviço oferecido pela Congregação? Em outras palavras, como se poderá evitar que, na Igreja Católica, o consenso sobre o “saber comum e vinculante” seja garantido por procedimentos e por órgãos de concepção pré-moderna? A Congregação, de fato, responde ainda a lógicas que o teólogo Hünermann,[12] há alguns anos, comentando a Notificação a Jon Sobrino,[13] definiu, com razão, como exercício do controle da doutrina segundo as lógicas do Ofício Inquisitorial do século XVI.

Todos os Estados modernos superaram essa configuração pré-moderna, que, ao contrário, resiste na Igreja. Como pensar o “consenso sobre a doutrina” de forma não pré-moderna? Esse é o verdadeiro tema da discussão, sobre a qual o Papa Francisco já começou a trabalhar, sugerindo, por exemplo, que alguns temas doutrinais sejam delegados às Conferências Episcopais. Justamente sobre esse ponto, não por acaso, levantaram-se os defensores de uma configuração pré-moderna, chegando a definir como “anticatólica” tal hipótese. Sobre isso, é preciso abrir um amplo debate, é preciso “sair” de estilos e linguagens velhos e inadequados, e entrar em lógicas novas e vivas.

IHU On-Line – Que leitura Francisco tem do Concílio Vaticano II?

Andrea Grillo – Como antecipei antes, com Francisco, que é o “primeiro Papa filho do Concílio”, o Vaticano II passa da função de “léxico” à função de “cânone”. Podemos dizer que, em muitos aspectos, até agora, o Vaticano II tinha entrado na vida da Igreja, sobretudo, como um “léxico novo”, um modo de falar e de definir, que muitas vezes deixava inalterado o cânone tridentino. Com Francisco, nós vemos o efeito dessa “passagem de léxico a cânone”. Isso significa que, nas “estruturas fundantes da vida eclesial”, começa a se afirmar uma “lógica nova”: a colegialidade sinodal, o primado da misericórdia, a crítica do clericalismo e a prioridade de uma Igreja pobre são apenas alguns dos sinais dessa passagem, que agora inicia de verdade.Passaram-se 50 anos desde o Concílio. Só depois de duas gerações poderíamos ter, como Papa, um homem que foi formado, pensou, rezou, celebrou, dialogou apenas na lógica do Vaticano II. A irreversibilidade do Vaticano II, para Francisco, é questão de biografia.

IHU On-Line – Como se dá a atualização e a tradução da tradição da Igreja através da “teologia de Francisco”?

Andrea Grillo – Podemos dizer assim: o que distingue Francisco dos predecessores é uma questão sutil, mas decisiva. Para Francisco, a tradução da tradição não é mais uma possibilidade, mas uma necessidade. Até Bento XVI, os Papas puderam pensar que a “tradição” bastava a si mesma e que toda intervenção sobre ela podia comprometê-la. Com Francisco, manifestou-se, de repente, uma consciência muito lúcida do fato de que a tradição vive apenas de traduções.
É óbvio que, traduzindo, pode-se trair. Mas não há alternativa à tradução. Aqui está a novidade. Até Francisco, podia-se pensar que era possível simplesmente “conservá-la”. Com Francisco, ficou claro — 50 anos depois da feliz intuição deJoão XXIII — que a Igreja não é um museu a se preservar, mas um jardim a se cultivar.

IHU On-Line – Em relação à liturgia, o que mudou do pontificado de Bento XVI para o pontificado de Francisco? Monsenhor Marini,[14] que era o mestre de cerimônias de Bento XVI, continua como o mestre de cerimônias de Francisco. O que isso significa?

Andrea Grillo – Eu não gostaria que nós fôssemos reduzidos a julgar Francisco apenas pelas “nomeações” que ele faz ou não faz. Francisco, em muito menos de dois anos, soube eliminar da liturgia Papal — e, em grande parte, também do discurso sobre a liturgia — toda aquela “patina retrò” que caracterizara o pontificado anterior. E mesmo aqueles que haviam cavalgado aquela moda, mais ou menos oportunistamente, agora se limitam a fazer o seu serviço, segundo as lógicas naturalmente conciliares de Francisco. Esse me parece ser um sinal de bom senso.
Não devemos esperar hoje que o Papa faça algo de espetacular na liturgia. Era ontem que devíamos estar estupefatos e desconcertados com as formas surpreendentes e anticonciliares que gozavam de crédito e de proteção de cima. Talvez nem toda a Cúria Romana entendeu o que está em jogo na liturgia. Não faltaram discursos, mesmo durante esse último biênio, de autoridades litúrgicas, que merecem ser imediatamente esquecidas.

IHU On-Line – Em que aspectos considera que a Sacrosanctum concilium deveria ser renovada?

Andrea Grillo – Concordo com o uso do verbo “renovada”: certamente, a Sacrosanctum Concilium, depois de 50 anos, também precisa ser “renovada”, contanto que não se fale, ao invés, de “reformar”. Reformar a reforma foi um slogan com que se tentou “esquecer e remover o Vaticano II”. Eu acredito que a “renovação” não deve se referir ao texto da Sacrosanctum Concilium, mas ao modo de interpretá-lo e fazê-lo entrar na vida da comunidade.

A Sacrosanctum Concilium propõe à Igreja um novo paradigma de participação nos “ritos e orações” e, em vista dessa participação, projeta uma grande Reforma dos ritos. Mas a Reforma não é o fim, é só o meio. Renovar a Sacrosanctum Concilium significa, hoje, trazer novamente ao primeiro plano não a Reforma, mas o fim da Reforma: ou seja, a iniciação à vida cristã mediante ritos e orações.

IHU On-Line – O pontificado de Francisco tem um programa? Para onde imagina que esteja levando a Igreja?

Andrea Grillo – Rumo àquele objetivo que João XXIII e Paulo VI tinham expressado — na sua linguagem — em termos semelhantes ao discurso que hoje Francisco propõe à Igreja, 50 anos depois. De um lado, valorizando a “pastoral” como tradução da linguagem e do estilo da Igreja. Mas, de outro, também como “melhor inteligência da tradição”, descobrindo o “fio dourado” da misericórdia como chave de leitura da experiência eclesial.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Andrea Grillo – Tudo aquilo de que eu falei até aqui, ocorreu dentro do aniversário conciliar. Esse primeiro biênio de Papado está entre 2013 e 2015, ou seja, nos anos de aniversário dos 50 anos do Concílio. E justamente na conclusão do Concílio o Papa previu um “relançamento” com o Jubileu da Misericórdia [16]. Isso tem um valor simbólico alto e irreversível: com o Papado de Francisco, o Concílio entra na fase da “normalidade eclesial”. A partir de agora, será normal pensar na vida cristã dos católicos com um Concílio que passa de “léxico” a “cânone”. Com Francisco, isso inicia solenemente, além de todas as hesitações e as contorções que os seus antecessores sentiram e provocaram.

Eu gostaria de repetir: a irreversibilidade do Concílio é questão também “biográfica”. Francisco não deve contar entre os seus méritos o fato de ter nascido justamente em 1938, de ter se formado na Argentina justamente nos anos conciliares e de ter absorvido, desde jovem, o estilo, a linguagem e a visão eclesial enraizada no Vaticano II. Francisco, a partir desses pontos de vista, é a mais clara expressão da virada que o Vaticano II imprimiu na tradição católica: a semente foi lançada há 50 anos, a maturação ocorreu durante esse cinquentenário de “elaboração eclesial”, e o fruto maduro apareceu, de repente, mas não sem bons motivos, no dia 13 de março de 2013.

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