O Papa Francisco é “anti-Trump”?

Um surgiu de um conclave em crise, o outro foi eleito após a mais estranha campanha presidencial da história recente americana. Ambos desafiaram as tradições e foram além dos canais usuais para falar às inquietações das pessoas comuns. Donald J. Trump e Jorge Mario Bergoglio, o presidente e o papa, são os populistas mais famosos do mundo. Estão, porém, em conflito.

A reportagem é de Austen Ivereigh, jornalista e cientista político. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Para entender por que o Papa Francisco se transformou no porta-bandeira da resistência a Trump, consideremos a visita que fez, em 17 de fevereiro, a um campus universitário em Roma, onde um dos alunos que lhe perguntaram era uma mulher síria, Nour Essa. O papa a conhecia muito bem. A família dela é uma das três, todas muçulmanas, que ele trouxe junto no voo de volta feito a um acampamento de refugiados em Lesbos, na Grécia. Francisco vem ajudando dezenas de refugiados a construírem uma vida nova na Itália. Duas famílias vivem no próprio Vaticano, cujos muros e fortalezas destoam do papa destruidor de fronteiras que neles se encontra atualmente.

No pátio da universidade Roma Tre, onde Nour Essa ganhou uma bolsa de estudos para cursar biologia, ela pediu que o papa respondesse aos europeus que acreditam que os migrantes ameaçam a cultura cristã do continente. A migração, disse o pontífice, não é um perigo, mas um desafio, um estímulo ao crescimento que vem expandindo a cultura da Europa.

“Quando há essa acolhida, esse acompanhamento, integração, não há perigo com a imigração”, disse. “Recebe-se uma cultura, e uma outra é oferecida. Essa é a resposta que dou ao medo”.

Tal populismo do papa não visa uma popularidade, mas sim a proximidade. Temos um papa que gosta de se colocar próximo.
Na medida em que as fronteiras da Europa se reforçam e os movimentos nativistas ganham espaço nas eleições, essas asserções ousadas de humanidade universal, apoiadas com ação concreta, fizeram do papa um construtor de pontes numa época de construção de muros. Por ter também antecipado a crise política atual muito antes de vir acontecer, um comentário do papa sobre as agitações sociais possui certa importância.

“Em momentos de crise, o discernimento não funciona”, contou ele ao jornal espanhol El País em janeiro, em data próxima à inauguração do governo Trump. “Discernimento” é uma palavra importante para o papa; ela é central para a sua espiritualidade jesuíta. Nesse caso, ele se referiu à capacidade de detectar “movimentos espirituais” – a presença do bem e do mal – nos eventos. Em épocas de crise, esta capacidade desaparece, e a projeção, o bode expiatório e a histeria tomam conta. Francisco citou o exemplo de Hitler, salientando que este se elegeu pelo povo e, depois, o destruiu.


Políticos populistas, disse o papa, prometem “[devolver-nos] a identidade e [nos defender] com muros, com arames farpados”. Em mensagem enviada a agentes comunitários reunidos na cidade de Modesto, na Califórnia, em fevereiro, Francisco lamentou as lideranças políticas que fazem uso do “medo, da insegurança, de disputas e até mesmo da indignação justificada das pessoas com o objetivo de pôr a responsabilidade por todos estes males no ‘outro’’”.

Francisco e Trump fornecem um material rico para traçarmos alguns contrastes. Um é, não obstante seus pontos fracos, um líder espiritual de maturidade extraordinária; o outro, apesar de seus pontos fortes, é um narcisista petulante supersensível à crítica. O primeiro é um celibatário que vive com simplicidade e em austeridade, acolhendo deficientes físicos e doentes; o outro é um germofóbico casado por três vezes que morava em uma torre de ouro e que zomba dos fragilizados.

No entanto, os dois populistas mais convincentes do mundo têm mais em comum do que poderíamos admitir. Tomemos, por exemplo, a capacidade extraordinária deles em criar conexões, indo além dos métodos tradicionais; o desafio das convenções que ambos promovem, inclusive na iconoclastia de cada um; ou consideremos a felicidade que têm ao desafiarem as elites existentes em nome do povo. Ambos parecem empoderados pela oposição, ainda que respondem a ela de uma maneira diferente –
Trump esbraveja e menospreza os críticos; Francisco os coloca de lado, com gentileza.

Em termos políticos, eles também dividem algumas características. Os dois, em sentido amplo, são nacionalistas. Quando Stephen K. Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca, diz que os Estados Unidos “não são apenas uma economia em um mercado global com fronteiras abertas”, mas sim “uma nação com uma cultura e uma razão de ser”, nada acrescenta ao que Francisco vem dizendo.

O papa não é um mero progressista. Nascido na Argentina, ele foi moldado por um movimento de nacionalismo continental católico que via a justiça social e a soberania econômica como centrais para um futuro melhor para a América Latina. Ele cresceu sob o – e sem dúvida foi influenciado pelo – peronismo, movimento popular que, nas décadas de 1940 e 1950, galvanizou o apoio da classe trabalhadora e da classe média baixa contra o establishment progressista da época, baseando suas políticas nos valores religiosos e nacionalistas dos argentinos comuns.

Embora mais tarde tenha se assumido como um autocrata, Juan Domingo Perón, em seus melhores dias, encarnava aquilo que Francisco considera a finalidade do Estado: Perón criou trabalho, integrou os excluídos (deu o voto às mulheres) e construiu um consenso em torno de valores fundamentais.

Ao longo de seu papado, Francisco vem criticando a ausência deste propósito maior nos governos progressistas tecnocratas da Europa e das Américas, que prevaleceram desde a década de 1980. Ele critica os princípios políticos que foram substituídos pela lógica de mercado e os governos que não conseguem defender os interesses e valores do povo em geral. Dirigindo-se aos jesuítas em Roma em outubro passado para o debate com os jesuítas reunidos na Congregação Geral, lamentou a perda da “grande política”, o ofício de construir a unidade a partir da diversidade e de criar aquilo chamado por ele de uma “cultura do encontro”, ou seja, uma sociedade que integra a todos – em vez de uma “cultura do descarte”, onde os pobres e indesejados são rejeitados.

Isso põe o papa em desacordo com o trumpismo em diversos sentidos. A encíclica sobre o meio ambiente, Laudato Si’, contém uma dura crítica à política que se deixa levar por resultados imediatos e ao modo como os governos cedem ao eleitorado em detrimento de interesses de longo prazo. Neste documento, o papa lamenta a captura da política pela economia, e os políticos que, loquazmente, prometem um crescimento sempre maior mesmo quando os atuais modelos de consumo e produção estejam destruindo o planeta. Uma crítica profunda, fruto de uma mente que passou décadas engajada nesses temas.

Com os alunos na Roma Tre, Francisco aplicou à economia ocidental o famoso conceito de “modernidade líquida”, do sociólogo Zygmunt Bauman. Por que os países desenvolvidos têm níveis tão altos de desemprego entre os jovens?, perguntou-se, acrescentando que “a economia líquida” conduz os jovens desempregados às drogas, ao suicídio ou ao terrorismo. Contra essa metáfora da liquidez, ele postula uma “economia social” que investe nas pessoas e abre o acesso à propriedade e à oportunidade com a difusão do trabalho.

Igualmente lamentável para o papa é a sociedade líquida, em que os laços familiares e comunitários são esvaziados por ideologias que coloquem o EUA em primeiro lugar. Francisco, como muitos outros papas antes dele, quer uma sociedade civil vigorosa que responsabiliza tanto o Estado quando o mercado.

Porque o papa e o presidente são críticos de um globalismo neoliberal que enfraquece os laços locais e beneficia as elites à custa do homem comum, a oposição diametral de suas visões de mundo fica ainda mais em evidência.

A resposta de Trump e Bannon é trabalhar com o ressentimento popular, prometendo aliviá-lo construindo muros, elevando as tarifas, impedindo a chegada de migrantes e desmantelando o Estado para liberar as energias do capitalismo popular. Sustentam esse plano com o compromisso de criar e promover uma cultura que se define como branca e cristã, enquadrando as elites globalistas dos meios de comunicação como “inimigas do povo americano”, e os muçulmanos e outros estrangeiros como terroristas potenciais que diluem ou ameaçam essa cultura.

Francisco vê a onda crescente de desempregados e migrantes como parte da mesma crise mundial produzida pelo capitalismo desumanizador. Quando fala aos trabalhadores, os pede que não vejam os migrantes como ameaças ou rivais, e sim como companheiros, vítimas da economia líquida, e que assumam uma causa comum.

O papa também ajuda-os a agir. Discretamente, nos últimos quatro anos Francisco tem apoiado e orientado uma associação global de “trabalhadores excluídos” como catadores de lixo e trabalhadores migrantes, atuando como uma liderança visível deles. Nos encontros destes “movimentos populares” – dois no Vaticano, um em Santa Cruz, na Bolívia, e outro realizado recentemente em Modesto, –, Francisco enfatiza que uma transformação profunda e duradoura irá acontecer quando os marginalizados se unirem, criando fortes instituições sociais que aprofundem os laços de confiança e solidariedade.

“Muitos esperam uma mudança que os liberte desta tristeza individualista que escraviza”, declarou o papa aos participantes do encontro realizado na Bolívia em 2015.

“Atrevo-me a dizer”, acrescentou, “que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos 3 Ts (trabalho, teto, terra)”.

No futuro pós-neoliberal de Francisco, os pobres do mundo agem com a Igreja e organizações da sociedade civil para criar uma economia a serviço do florescimento humano, ao mesmo tempo em que convida os Estados a receber, em solidariedade, os migrantes.

No futuro pós-neoliberal de Trump, ex-executivos-chefe, administradores de fundos bilionários e magnatas do setor imobiliário desmantelam o Estado para tornar o capitalismo ainda mais líquido, usando porém o mesmo Estado para enrijecer as fronteiras.

Dito isso, o núcleo da discordância entre o papa e o presidente é, em última instância, religioso. Bannon crê que a Igreja Católica precisa ser resgatada de Francisco, quem ele vê como parte da elite global (descrição que certamente surpreenderia o papa). O ideólogo-chefe de Trump firmou uma curiosa aliança com o maior crítico do Papa Francisco, Raymond Burke, cardeal americano residente em Roma, na convicção de que “a cultura cristã” está envolvida numa rivalidade mortal contra o Islã – é a tese de Samuel Huntington, compartilhada pelo Estado Islâmico, de um “choque civilizacional” duradouro.

Francisco abomina essa noção e a rejeita sempre que pode. A religião, que é universal (porque Deus é), jamais pode ser capturada por uma cultura nacional; nem pode a verdadeira religião ser alguma vez a causa do terrorismo e violência. Para Francisco, todo fundamentalismo – seja cristão, seja muçulmano ou nativista – é ateísmo, e toda violência em nome da religião é simplesmente um absurdo. (É isso o que ele quis dizer quando surpreendeu muitos católicos ao descrever o assassinato de um padre francês, Jacques Hamel, por simpatizantes do Estado Islâmico em julho do ano passado como “violência absurda”.)

Para o papa, um país cristão que defende a sua religião mandando embora pessoas necessitadas não está protegendo-a, mas envenenando-a; ser verdadeiro ao cristianismo exige ver todos como criaturas iguais de Deus, independentemente de quem são e no que creem. Quando os jornalistas descobriram que eram muçulmanos os doze refugiados que viajavam com o papa voltando de Lesbos em fevereiro do ano passado, perguntaram por que ele havia feito esta escolha.

“Não tomei nenhuma decisão entre cristãos e muçulmanos”, respondeu o papa “Estas três famílias estavam com os documentos em dia. Havia duas famílias cristãs que não estavam com os documentos em dia. Não é um privilégio, todos são filhos de Deus. O privilégio é ser filho de Deus”.

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