Uma sociedade viral em tempos de Covid-19

Estamos todos em quarentena. Quarentena é, para infectologistas e a medicina em geral, resguardo para não contágio de uma doença ou uma epidemia. Mas também é, para os católicos, os quarenta dias que precedem o Domingo de Ramos, um tempo de reflexões, jejum, orações e caridade.

Por Rodolfo Medina

Que tempo oportuno para vivenciarmos a quaresma: em quarentena. Deixar de sair de casa e nos recolher em nós mesmos, para rezar, refletir, sonhar, se cuidar. Jejum de horas na internet e possibilidade de cuidar dos filhos e filhas que fazem seu dever de casa, suas aulas como podem, à distância de seus mestres e suas mestras. Jejum de coisas supérfluas porque não sabemos como serão os próximos dias, as próximas horas, nesta desorientada realidade em que estamos. Oração para enfrentar as dificuldades de viver e se adaptar a um lugar aonde antes era de descanso e repouso. Oração também para compreender tudo o que se passa e poder sair com resistência após a passagem desta doença. E a caridade com aqueles que, neste momento têm seus direitos violados, abandonados à própria sorte. Caridade também com os nossos próximos, parentes, família, vizinhos, em diversas manifestações de carinho que surgem em meio a esse caos. Que tempo oportuno para vivenciarmos a quaresma!

É neste momento oportuno que escrevo esses pensamentos, na ânsia de partilhar algumas ideias, sonhos, projetos, devaneios, anseios, vontades ou mesmo angústias, que sinto neste ínterim. A vida passa diante de nossos olhos, não só a minha, não só a da minha família, mas de uma sociedade toda, que se transforma a cada segundo que as notícias chegam ou que a doença se espalha.

Esta doença só colocou em voga um vírus que já perambula em nossa sociedade por muito tempo. É o vírus do egoísmo, da ganância e da falta de compaixão pelos mais necessitados. Vírus da acumulação de dinheiro e má distribuição de riquezas. Vírus de desigualdade social que mata, a todo instante, mais pessoas que a doença que avança. Vírus de guardar interesses de bancos, da economia, sacrificando vidas que já perderam seu direito de viver a muito tempo, em uma sociedade que dá mais valor para os tostões guardados à custa de lágrimas do povo que sofre.[1]

Assim nos tornamos grandes genocidas, como expõe o Papa Francisco[2], dando razão a Thomas Hobbes[3]? Será que vale salvar a economia e perder a vida? E de qual vida estamos falando? Quem tem direito a vida nesta sociedade viral? Quem vale mais? Como alguém pode achar normal, em tempos de caridade, jejum e oração, pessoas serem abandonadas a própria sorte, sem salários, sem direitos, sem moradias, sem abrigos, sem qualidade de viver, sem vida para partilhar? Como alguém pode achar normal viver em uma sociedade que se mostra viral muito antes da passagem de uma doença dessas? Como podemos silenciar nossos corações para rezar, se lá fora existem irmãos gritando por socorro, por um pedaço de pão, um colchão para dormir?

Nós já temos a vacina para esse vírus. Sabemos viver em comunidades. Pequenas organizações de seres humanos que buscam o cuidado comum, visam o amor ao próximo, buscam transformar dor em alegria.

Que tempo propício para quaresmar, “quarentenar”, compreender, concatenar com o mundo, e refletir sobre nós!

Rodolfo Medina é professor efetivo de Filosofia do Estado de São Paulo e especialista em Educação para Inserção Social – contato: rmedina@prof.educacao.sp.gov.br


[1] https://www.cartacapital.com.br/politica/pandemia-expoe-que-governo-nao-sabe-o-que-e-um-pobre-ou-a-economia-real/

[2] http://www.ihu.unisinos.br/597686-papa-diz-que-colocar-a-economia-antes-das-pessoas-seria-genocidio-viral

[3] https://super.abril.com.br/ideias/o-homem-e-o-lobo-do-homem-thomas-hobbes/

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