Entendendo o livro do Deuteronômio

“Abra a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu necessitado, na terra onde você está” (Dt 15,11). Esse é o tema para o mês da Bíblia deste ano e a proposta é estudar, refletir e rezar o livro do Deuteronômio. Só é capaz de abrir a mão em favor da outra ou do outro quem tem empatia, ou seja, a pessoa que é capaz de colocar-se no lugar da outra, do outro. Antes de abrir a mão é preciso abrir os olhos e o coração. Nesse tempo de pandemia, vemos muitas pessoas abrindo o coração e a mão em favor de outras.

Por: Maria Antônia Marques

Estudar o livro do Deuteronômio é um grande desafio, pois a redação final desse livro foi feita no período pós-exílio, por volta de 350 a.C., mas ele traz memórias desde a origem de Israel, ao redor de 1200 a.C., quando vários grupos fizeram a experiência de sair do sistema de opressão do faraó do Egito e dos reis cananeus e se organizaram em tribos, vivendo uma nova forma de organização social, marcada pela solidariedade e a partilha.

Na monarquia do Israel Norte, em torno de 750 a.C., diante das injustiças cometidas pela classe governante, alguns grupos proféticos retomam a memória do Deus libertador, vivenciado no êxodo e surgem algumas leis de defesa dos pobres, porém essas tradições foram primeiramente escritas no sul, Judá, no tempo de Ezequias (716-687 a.C.), revistas e ampliadas no tempo de Josias (640-609 a.C.), retomadas no exílio da Babilônia (597-538 a.C.) e ainda passaram por releituras no pós-exílio, tendo a redação final em um período tardio.

A experiência de uma divindade sensível ao sofrimento do povo está no coração da fé bíblica: “Estou vendo muito bem a aflição do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-lo do poder dos egípcios e fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde correm leite e mel” (Ex 3,7-8a). O êxodo é uma experiência muito forte, que alimenta a espiritualidade judaica e cristã.

As leis mais antigas que estão no livro do Deuteronômio estão muito próximas do Êxodo. São leis que, em nome do Deus libertador, defendem os pobres. Porém é preciso estar atento, pois esse livro teve um longo processo de redação e transmissão. Nesse livro encontramos contradições, variações de estilo, repetições, diferentes cenários e várias frases introdutórias. Isso nos mostra que o Deuteronômio se formou aos poucos.

Na parte mais antiga do livro, contida em Dt 12-26, encontramos a memória do êxodo do Egito. Essas tradições, que remontam ao período pré-estatal de Israel (1200-1000 a.C.), foram retomadas e reescritas no tempo da monarquia, no reino de Israel Norte, em meados do século VIII a.C., provavelmente pressionado pelo movimento profético popular. Os profetas denunciaram a exploração e a dominação do Estado, que impôs a lei da centralização a serviço do poder e do lucro.

Com a destruição de Israel Norte (722 a.C.), muitos israelitas fugiram para Judá (Sul), levando consigo suas tradições. Entre elas, estava o material que serviu de base para reforma do rei Ezequias, que editou o núcleo, Dt 12-26. Depois, o mesmo texto foi, ao longo da história, revisto e ampliado, dando origem ao atual livro do Dt 1-34. O Deuteronômio é um livro escrito por muitas mãos, com diferentes grupos sociais, interesses, situações, locais e momentos históricos diferentes.

Para nos situarmos melhor na história, vejamos as quatro principais etapas principais do nascimento do livro do Deuteronômio:

1) Reforma de Ezequias (716-701 a.C.)

As guerras causadas pelo avanço do império assírio e a queda da capital de Israel Norte, Samaria, provocaram a fuga de um grande número de refugiados para Judá, obrigando o rei Ezequias a decretar leis sociais para amenizar a crise pela chegada de refugiados, estrangeiros, órfãos e viúvas. Ao mesmo tempo, com a destruição do seu rival Israel Norte, Judá se tornou um Estado forte e assumiu uma política expansionista e militarista. O culto a Javé foi centralizado no templo de Jerusalém como religião oficial, a serviço da centralização do poder e da riqueza. Para promover essa política (a reforma de Ezequias), os escribas do rei, chamados de “deuteronomistas” escreveram Dt 12-26, que foi chamado de “Livro da lei”.

Na reforma de Ezequias acontece a primeira edição do livro do Deuteronômio – Dt 12-26 (O livro da Lei).

2) Reforma de Josias (620-609 a.C.)

Aproveitando a crise da Assíria, enfraquecida por causa da guerra contra a Babilônia, o rei Josias, quase cem anos depois, retomou e executou a reforma iniciada por Ezequias. Ele também empreendeu uma política expansionista e militar, realizou a centralização de Javé oficial do Estado e empreendeu uma perseguição violenta contra as outras divindades e até mesmo dos deuses domésticos. Nessa realidade, os escribas do rei revisaram, ampliaram, sobretudo a lei da centralização, e reeditaram Dt 12-26, transformando-o em Dt 4,44-28,68, chamando-o de “Livro da Aliança” (2Rs 23,2).

Na reforma de Josias, o texto do livro da Lei foi revisto, ampliado e reeditado: Dt 4,44-28,68 (O livro da Aliança).

3) A redação exílica (587-538 a.C.)

Em 587, o rei Sedecias se levantoucontra a Babilônia, provocando o desastre nacional de Judá: a invasão da Babilônia; a destruição de Jerusalém; deportação; morte; fome; abandono. Neste contexto, os escribas revisaram e fizeram acréscimos no texto de Dt 4,44-28,68 para confirmar que o exílio foi castigo de Javé, causado pelo rompimento da aliança por parte do povo, sobretudo dos governantes (Dt 4,21-31; 17,14-20; 28,47-68).Os escribas levitas tentaram animar e orientar o povo para voltar à Lei de Javé.

4) Redação pós-exílica (538-400 a.C):

A quarta etapa é a redação pós-exílica (538-400 a.C.): Com Neemias e Esdras, o império persa reconstruiu Judá e Jerusalém como uma teocracia para controlar o Egito. O templo se tornou um centro de poder sociopolítico fortificado e dirigido pelos sacerdotes.

 A teocracia, por um lado estabelece Javé como o único Deus do universo (Dt 4,35; Dt 26,12-15), proibindo qualquer tipo de imagem ou representação cúltica (cf. Dt 4,9-20); e, por outro lado, apresenta Israel como o povo eleito, povo santo, submetido à lei do puro e do impuro, fortalecendo o templo de Jerusalém como centro arrecadador das oferendas pela purificação, e de todas as ofertas e sacrifícios (Dt 7,1-5; Esd 9).

Na redação final, o livro do Deuteronômio com os capítulos 1 a 34 é um apelo à conversão e à unidade do povo eleito na obediência à Lei, e exalta Moisés como o patrono da Lei e o único mediador entre o povo de Israel e Javé, o Deus poderoso e único da teocracia judaíta.

Redação exílica e pós-exílica: revisão de Dt 4,44-28,68 e ampliação: Dt 1,1-4,43 (Introdução geral), 28,69-30,20 (Conclusão geral) e 31,1-34,12 (Apêndice).

O livro do Deuteronômio apresenta textos de teor humanitário, com leis de proteção para as pessoas mais fracas e empobrecidas, por exemplo: Dt 24,19-21. Mas também apresenta outros textos desumanizadores que justificam matar em nome de Deus, como Dt 12; ou ainda oprimir e escravizar mulheres e crianças, como está em Dt 21,10-14. Isso são marcas do longo processo redacional desse livro, que durou cerca de quatro séculos. É preciso conhecer a história do Antigo Israel para entender o texto e o que está por trás dos textos.

Como seguidoras e seguidores de Jesus de Nazaré, que resgatou as leis sociais nascidas na experiência tribal, e seguiu a mesma tradição de profetas como Amós, Miqueias e Jeremias, temos o compromisso de ler o livro do Deuteronômio não somente pela redação final, no pós-exílio, mas buscar aí a parte profética, que se manifesta nas leis mais antigas, que defendem os fracos e os empobrecidos, reforçando os valores comunitários, a solidariedade e a justiça: “Não distorça do direito do migrante e do órfão, nem tome como penhor a roupa da viúva. Lembre-se: você foi servo no Egito e daí, Javé, o seu Deus o resgatou” (Dt 24,17-18).

Abrir a mão em favor dos pobres e necessitados… É tempo de superar o de olhar nos olhos das pessoas que sofrem, de se aproximar, de ouvir seus gritos e se compadecer. Que a leitura das leis mais antigas, presentes no livro do Deuteronômio, anime a nossa caminhada cotidiana e a de nossas comunidades.

Maria Antônia Marques – Centro Bíblico Verbo

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